Conta a lenda que há 27 anos, quando o gaúcho Péricles Druck começou a erguer Jurerê Internacional, os habitantes de Florianópolis - os "nativos" como eles mesmos gostam de se autodenominar - faziam piada. "Só um gaúcho tolo, como são todos os gaúchos, poderia pensar em construir um bairro no meio do banhado" diziam, então, referindo-se ao fato de que o novo empreendimento localizava-se junto a um mangue.
Passados os primeiros anos, Jurerê Internacional mostrou-se um sucesso: primeira praia de Forianópolis com tratamento de esgoto, controle do lixo, sistema viário inteligente, ruas e praças mantidas com capricho e moradores que se esmeram no embelezamento de seus jardins - todos eles sem cercas ou muros, como queria a proposta idealizada por seu criador e como permite o baixo índice de criminalidade local - o empreendimento é considerado modelo no mundo todo.
Por isso, por oferecer algo inédito no Brasil, Jurerê Internacional supervalorizou, tornando-se sinônimo de luxo e ostentação arquitetônica. Por isso, também, o "internacional" que o bairro carrega, desde o princípio, em seu nome é uma realidade: franceses, suecos, italianos e americanos escolheram viver aqui. E também gaúchos, paulistas, paranaenses, pernambucanos... Os que não podem, ainda, se dar ao luxo de abandonar suas cidades de origem para integrar este pequena comunidade, hoje estimada em cerca de 1300 famílias, mantém aqui residências de férias.
Deve-se dizer que, por uma razão qualquer - talvez pela própria manutenção daquela antiga piada sobre o banhado - são poucos os nativos que optaram morar aqui. E, dentre estes poucos, a maioria tem no bairro a sua "casa de veraneio" - traço cultural um tanto curioso, já que ela, não raro, fica a menos de 15 minutos de sua residência oficial, no centro da cidade.
A despeito, porém, de toda a real ostentação dos meses de veraneio - quando Ferraris invadem as nossas avenidas e a praia mais parece uma edição da revista Caras - quem mora aqui, sabe: durante 10 meses do ano, Jurerê Internacional é um bairro de classe média alta. Velhos agasalhos e havaianas são o uniforme predileto de quem veio para cá para viver bem mas sem ostentação. E o visitante que vem embalado pelo discurso de "bairro luxuoso" fica surpreso ao encontrar, na maioria das nossas garagens, carros econômicos.
Mas de alguma forma esta não-afluência de nativos para Jurerê Internacional somou-se ao alto-padrão de vida do bairro para consolidar geograficamente um preconceito mais geral. A ilha, como se sabe, sofre de uma certa xenofobia. Do ridículo movimento "Fora Haole", ao simples tratamento gélido, paulistas e gaúchos são os alvos preferenciais desta segregação que revela um lado nada bonito da "bela e santa Catarina". Jurerê Internacional passou, então, a ser visto como um "reduto de forasteiros milionários". Inveja e xenofobia fazem, pois, com que cada problema surgido no bairro seja quase que comemorado por alguns luminares da imprensa local.
Por "problemas no bairro" leia-se aquilo que é natural em qualquer local luxuoso do mundo, resultado do fato óbvio de que contraventores bem sucedidos gostam de morar bem: volta e meia, algum criminoso - ou uma quadrilha deles - é descoberto por aqui. Acontece em São Paulo. Acontece em New York. Acontece no Rio. E, é claro, acontece em Jurerê Internacional. Mas não é só. Também os raros assaltos e acidentes de trânsito são noticiados num tom que mal disfarça o deleite: " há problemas no paraíso".
Sim, há problemas no paraíso
É fato que a administração não raro negligencia a manutenção de áreas mais antigas para investir todas as suas fichas em novos empreendimentos. E se há muito rigor com algumas normas - como a altura dos muros laterais - a política é frouxa com os donos de terrenos baldios, que usualmente são mantidos limpos pelos moradores das casas vizinhas.
Também é verdade que se aqui não falta água ou luz na alta temporada - problema corriqueiro na maioria das praias da ilha -, deve-se admitir que a afluência para cá de bares e casas naturnas, verificada nos últimos três anos, está corrompendo o projeto inicial de uma comunidade tranqüila.
Finalmente, já faz algum tempo que os moradores mais antigos reclamam das alterações do projeto inicial. Áreas que, no momento em que compradores eram para cá atraídos, foram catalogadas como de "preservação", transformaram-se em prédios e residências colossais. Havia alguma coisa de muito errada acontecendo. E quem tentou mobilizar-se junto aos órgãos competentes, o fez vão.
Chegamos, pois, à prisão de Perciles Druck, idealizador de Jurerê Internacional, juntamente com outros 21 empresários, políticos e funcionários públicos catarinenses, ocorrida na última quinta-feira, sob a acusação de compra de licenças ambientais.
Uma bandeira para os xenófobos invejosos
Não foi exatamente uma surpresa, já que há muito se murmura a respeito da facilidade com que planos-diretores são alterados em toda a ilha - e não só em Jurerê Internacional. Mas basta acompanhar algumas manifestações da imprensa local para perceber que Druk e seu empreendimento estão merecendo um destaque todo especial: o que antes era a manifestação semi-velada de inveja e xenofobia ameaça, agora, transformar-se em ataques diretos, desferidos contra toda uma comunidade que nunca foi, na verdade, "engolida" pelos nativos.
Depois de 27 anos amargando o fato de que a piada havia se transformado num entrondoso sucesso, eles agora encontraram uma bandeira. É assim que nas últimas 48 horas a imprensa local está se dedicando a publicar notinhas estapafúrdias, carregadas de mágoa, preconceito e inveja: que os, até então orgulhosos, moradores de Jurerê Internacional estão agora evitando revelar onde moram; que o bairro concentra o maior número de contraventores por metro quadrado da ilha ou que os "gaúchos" são corruptores compulsivos, tendo maculado a "boa índole nativa", são algumas das "perolas" publicadas por esta louvável imprensa de merda. Vou repetir: louvável imprensa de merda, que não hesita em fazer uso de um episódio grave para dar vazão às suas vergonhosas frustrações.
Se de fato está envolvido com corrupção, Druck deverá responder por todos os seus atos. Se o episódio servir para preservar o que ainda resta de natureza intocada em Jurerê Internacional, desejo da maioria dos seus moradores, melhor ainda. Mas os habitantes de Jurerê Internacional - e os gaúchos de Florianópolis como um todo - não têm motivos para aceitar passivamente o uso lamanetável que se começa a fazer deste episódio. Pois a verdade nua e crua é que aqui moram pessoas de valor, que para cá trouxeram seu dinheiro, seus sonhos e sua capacidade de trabalho - e que, não raro, aqui realizam empreendimentos que os nativos jamais tiveram capacidade de realizar.
Se não por isto, pelo menos pelo fato inegável de que outros 21 estão envolvidos na mesma maracutaia, que muitos são nativos, e que nenhum deles, a despeito de toda a corrupção praticada, foi capaz de erguer um bairro que é padrão de qualidade no mundo inteiro, seria melhor que os nativos calassem.